15/09/2009 – 00:26
Alguns conteúdos parcialmente extraídos e adaptados de tradução livre da dissertação doutoral (documento original em inglês) de George Felipe de Lima Dantas.[i]
George Felipe de Lima Dantas (*)
&
Luciano Porciuncula Garrido (**)
Artigo com revisões, sugestões e contribuições de Carlos Eugênio Timo Brito (***)
15 de stembro de 2009
Resumo:
Este artigo apresenta algumas práticas e antecedentes históricos da formação de recursos humanos por milhares de instituições policiais norte-americanas, em uma perspectiva institucional que está alinhada com as práticas democráticas da chamada filosofia de gestão comunitária da segurança pública (polícia comunitária) e os movimentos sociais daquele país nas décadas de 1950 e 1960. A literatura técnica brasileira da área parece escassa, com este artigo podendo servir como plataforma para estudos futuros.
Palavras-Chave: Análise ocupacional policial por tarefas; Educação e treinamento policial; Plano de Carreira; Validade de Conteúdo.
Duas coisas me enchem o ânimo de admiração e respeito: o céu estrelado acima de mim e a lei moral que está em mim. [Immanuel Kant (Alemanha, 1724-1804), Crítica da Razão Pura]
O Imperatico Categórico[1]
Colocado de outra maneira, quando da criação de teoria em ciência social, algumas vezes nós estamos tão seguros, a ponto de confundir a distinção entre pessoas e coisas. Passa-se, assim, a tratar pessoas como objetos manipulados em técnicas em que elas acabam sendo transformadas em números. Tais números, por sua vez, são então manipulados sem muita preocupação para o fato de que eles representam gente. Freqüentemente, os interesses das pessoas são bem atendidos por essa manipulação, como ao fazê-la para melhorar técnicas cirúrgicas, criar drogas para tratar o câncer ou estabelecer a necessidade de cautela de ‘direção segura’ com o uso de cintos de segurança nos feriados. Mas, particularmente quando saímos da criação de teoria para a tomada de decisão que afeta pessoas, tratá-las como objetos é uma violação do ‘Imperativo Categórico’. Isso não quer dizer que nunca quebremos a regra. Mas nós não devemos optar por quebrá-la e, quando o fizermos, devemos nos sentir mal por tê-lo feito. Ao menos, seguindo Kant, essa e a lei segundo a qual devemos optar por viver como seres humanos racionais e livres. [ii] [2]
INTRODUÇÃO
“Lógica é a técnica pela qual adicionamos convicção à verdade”
(Jean da Bruyere, 1645-1696)
Reflexões aplicáveis à situação brasileira atual, sobre algo em que ainda ‘falta informação técnica’
Como nos anos anteriores, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) abriu edital em 2009 para o concurso público para o Curso de Formação de Soldados (CFSd) da instituição. O edital, em seu conteúdo, trazia um pré-requisito inusitado em relação a todos os seus concursos anteriores, bem como aos de todos os concursos equivalentes de organizações congêneres do país: exigência de nível de escolaridade superior. Concomitantemente, policiais militares já incorporados aos quadros da PMDF foram instados a realizar (sob os auspícios governamentais) um curso superior em segurança pública com duração de dois anos, portanto menor que um bacharelado ou licenciatura, em uma instituição de ensino superior (IES) privada da capital do país (única a oferecê-lo localmente), na modalidade de ‘ensino à distância’ (EAD).
A questão do novo pré-requisito causou controvérsia, tanto no aspecto jurídico quanto conceitual. O concurso foi suspenso pela intervenção da agência local de controle externo do Governo do Distrito Federal – o Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) – e depois pelo próprio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
Se a exigência desse novo pré-requisito vier a ser chancelada, algumas implicações lógicas podem e mesmo devem ser antecipadas desde já. Turmas de oficiais formados desde 1992 (17, portanto, até o ano deste artigo) nesse novo arranjo, teriam cursos superiores institucionais específicos de três anos de duração. Turmas de praças admitidas à PMDF em momento anterior ao advento da nova exigência poderiam ter um curso superior genérico de segurança pública de duração menor (dois anos) que a de um bacharelado ou licenciatura (de quatro até seis anos) e também menor que a dos cursos institucionais específicos (três anos). Os mais recentemente admitidos teriam, em sua maioria, cursos superiores plenos (bacharelados e licenciaturas) de áreas as mais variadas.
Diante disso, oportuno se faz examinar também exemplos da integração entre a atividade de treinamento institucional e a de formação educacional universitária civil prévia ou concomitante, considerando tudo isso em prol da atividade-fim institucional. É necessário, nesse caso, supor logicamente toda uma ‘reengenharia’ estrutural no sistema de desenvolvimento de recursos humanos e no próprio formato organizacional da PMDF - ou de qualquer outra instituição coirmã. É o que faz supor uma nova proposta de plano de carreira em que o nível superior civil pleno se coloca como requisito fundamental quando da entrada na instituição, ao mesmo tempo em que os cargos de liderança previamente postada (oficiais) têm um nível superior específico institucional de menor duração, enquanto os antigos membros da instituição, da primeira metade hierarquizada da carreira, podem ser educados em nível superior genérico da área (processo já em curso), de maneira não-institucional, porquanto civil em uma IES privada. Eis aí um quadro bastante peculiar para o qual cabe levantar algumas questões – Tratamento desigual (em termos de igualdade de acesso aos níveis máximos da instituição) para recursos humanos desigualmente formados em termos de escolaridade? – Tratamento igual (em termos de igualdade de acesso aos níveis máximos da instituição) para recursos desigualmente formados em termos de escolaridade, com todos sendo nivelados por atividades de treinamento específicas à realidade técnico-profissional? – A questão é complexa, mais ainda se for considerada a máxima democrática de que não é possível tratar igualmente os que em princípios são desiguais...
A formação policial, em seus diversos aspectos, envolve os temas interpenetrantes da educação e do treinamento. A universidade, como se sabe, não é uma instituição voltada para o treinamento, mas sim para a educação. – Mas qual seria a diferença, na área policial, entre educação e treinamento? – Talvez um bom exemplo, mais palpável, comece a elucidar tal questão. Toda vez que um policial vai portar um armamento, é treinado para utilizá-lo, sem que necessariamente seja educado sobre esse armamento. Um engenheiro especialista em armamento, diferentemente, precisa saber o porquê ou os vários mecanismos e princípios científicos determinantes no funcionamento de uma arma, dentre várias, bem como a maneira de aperfeiçoá-la e/ou repará-la com efetividade e segurança. Se alguém sabe as razões mais profundas daquilo que de antemão sabe ‘como fazer’, tanto melhor. Mas combinar educação com treinamento, no caso policial, não é algo tão simples, ao menos tecnicamente, como possa parecer na retórica política.
Diante disso, a pergunta imediata a ser feita é: como pode ser estabelecida a padronização do treinamento policial em seus vários aspectos? - Uma resposta possível aponta para uma técnica definida como “análise ocupacional”, a qual prioriza determinadas questões técnicas essenciais ao treinamento policial.
No entanto, antes de examinar com mais profundidade a idéia de análise ocupacional, é importante perceber que o impasse criado com o estabelecimento do pré-requisito de nível superior para o concurso para o CFSd da PMDF em 2009 suscita relevante reflexão adicional sobre a questão da educação de nível superior e do treinamento para o exercício de cargos e funções policiais institucionais.
De modo a compreender com clareza as conseqüências desse impasse, oportuno se faz resgatar a contraposição feita por Jurkanin[iii] entre o que ele chama de “a torre de marfim” e um “currículo asseguradamente relevante.” – Será, então, que um suposto academicismo educacional de nível superior possa ser antagônico a uma relevância curricular de programas de treinamento policial? - A questão, em sua complexidade, envolve uma resposta que não pode ser acomodada de forma ligeira, na simplicidade monossilábica de um ‘sim’ ou de um ‘não’. Para respondê-la, talvez seja apropriado recorrer a uma série de argumentos de um Jeremy Travis[3], ex-diretor do Instituto Nacional de Justiça dos EUA (órgão de pesquisa do equivalente ao Ministério da Justiça dos EUA) e atual presidente da Faculdade John Jay de Justiça Criminal da Universidade da Cidade de Nova Iorque (uma das mais proeminentes instituições mundiais do gênero). E ele observa:
With all due respect, our colleges and universities cannot begin to meet this fundamental need to support the organizational transformation of a critical societal function in rapidly changing times. Instead, the challenge we should pose today is to the policing profession itself. The profession should address the question: What level of judgment, maturity, knowledge, and intellectual curiosity should we expect of our employees? [iv] [4]
Travis faz uma digressão histórica constante nos registros de sua fala, já referidos antes, em relação ao tema do ensino superior para policiais, discussão que, aliás, já se estende por várias décadas nos EUA. Ele trata fatos históricos sobre a questão, como os albores da alusão a uma necessária educação superior para policiais tendo como proponente August Vollmer (1876-1955), Chefe de Polícia de Berkeley, Califórnia (1906-1932).
August Vollmer
A questão será depois retomada com mais intensidade nos anos 1960, em função de fatos históricos que denegriram a imagem policial nos EUA e dod quais derivaram várias iniciativas governamentais em relação ao setor. A abordagem de Jeremy está centrada na questão da educação de nível superior em sua relação com atividades de treinamento, progressão na carreira e no desenvolvimento da própria função social do policial em tempos modernos. Cita, entre outras antigas recomendações (1967), "that all police personnel with general enforcement powers have baccalaureate degrees."[5] Ressalva, entretanto, “This was, of course, presented as "an ultimate" rather than an immediate, goal”[6]. Vale ressaltar, no entanto, que a educação de nível superior da comunidade policial norte-americana, mesmo após tal recomendação citada por Travis de 1967 ainda apresentava a seguinte configuração em números coligidos em “survey” de 1992 (passados 25 anos, portanto) [v]: “Only about 14 percent of the departments surveyed by PERF[7]require more than a high school diploma or equivalent for entry (...). Almost three-fourths have no policies, formal or informal, requiring college education for promotion.[8]
Travis se declara um entusiasta da educação de nível superior para policiais. E não poderia ser diferente, já que é o dirigente máximo de uma IES voltada para o setor policial propriamente dito. Mas não o faz apenas enquanto proponente do nível superior como requisito de admissão, mas sim como um objetivo de desenvolvimento humano genérico aplicável também aos policiais e com o olhar na complexidade do fenômeno do crime e da violência e na sua dinâmica histórica. E é referindo-se a tal dinâmica e ao caráter mutante do fenômeno com que lidam os policiais que ele parece ser conclusivo:
Change requires a commensurate response, and not just in the technology used to deal with whatever way the crime problem manifests itself. If the broader goal is better policing, and higher education becomes only one means toward that end, it would be to our advantage to look in a lot of directions to find other means, other models. So I would like to broaden our vision of the education process, and to suggest "inventorying" and rethinking the multiple components of that process -- in the way education/training is structured, in the curricula, in the way we seek to attract recruits, in the way we build leadership, in the way we "deliver" education/training "products," and so on. This exploration itself has to be an ongoing process, a continuous pursuit of new methods and structures to meet new needs. It is going to further blur the distinction between education and training.[9]
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