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sábado, 13 de junho de 2009

Critérios para uma polícia democrática.

20/05/2009

Julio Henrique Santos Soares · São Paulo (SP)

Observando as origens das polícias no Brasil, sobretudo das polícias militares, verifica-se que sua gênese remonta às tropas que compunham as forças de defesa interna do país. Historicamente, foi enraizado nas polícias de segurança brasileiras um perfil violento e autoritário, algo avesso às aspirações num contexto democrático. De um modo geral, as polícias locais também foram instrumentos políticos, voltadas para defesa dos interesses de elites e com estrutura e treinamento militares. As polícias não atuam conjuntamente, via de regra, e ainda são comuns práticas como a tortura, o espancamento e o desrespeito a direitos fundamentais. Atualmente, boa parte do paradigma negativo foi superado, mas ainda há muito a ser transformado nas estruturas e culturas policiais brasileiras. A fim de explorar fatores relevantes no processo de revisão ou reforma policial brasileira, torna-se imperiosa a discussão em torno de critérios essenciais para uma polícia democrática.

Um critério indispensável recai sobre a extensão da reforma policial. Neste caso, a integração das instituições policiais brasileiras parece ser a dimensão mais apropriada, ao menos, inicialmente, precedendo uma possível unificação, desmilitarização ou desconstitucionalização das polícias. Atualmente, tanto no plano nacional quanto no plano regional (estadual), e entre estes, são isoladas as experiências de ações conjuntas e complementares entre as forças policiais, o que tem comprometido a eficiência e eficácia destas instituições na prevenção e controle do crime. A reforma das polícias tem-se mostrado inevitável e um caminho que talvez possa ser percorrido, num primeiro momento, seria a regulamentação do parágrafo 7° do artigo 144 da Constituição, estabelecendo a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública. Com efeito, tal providência também poderia favorecer a cooperação interinstitucional criando mecanismos e instrumentos para coordenação de trabalhos conjuntos. É claro que a base para isto requer o estabelecimento de um banco de dados criminais padronizado e compartilhado nacionalmente (o aperfeiçoamento do Infoseg – Sistema de Integração Nacional de Informações de Justiça e Segurança Pública – é imprescindível, bem como do Infocrim – Sistema de Informações Criminais de São Paulo) e a reeducação dos profissionais de segurança pública através de qualificação e aperfeiçoamento, com foco na sensibilização ao respeito aos direitos humanos e à defesa das liberdades fundamentais. Os procedimentos e técnicas policiais padronizadas minimamente em âmbito nacional são recomendáveis.

Uma tendência mundial nos países de regime democrático é a multiplicidade de órgãos policiais. Tal tendência é uma recomendação para que seja possível assegurar maior controle sobre as forças policiais, já que estas tornar-se-íam menos complexas. O gigantismo de algumas corporações policiais é um desafio que dificulta o trabalho de qualquer gestor de segurança pública ou administrador policial. Também permite a adequação das polícias segundo as necessidades locais, assegurando a adoção de ferramentas de gestão modernas e favorecendo sua aplicação - o diagnóstico, o planejamento, a avaliação e o monitoramento são facilitados. O Brasil, com base no sistema de segurança pública disposto na atual Carta Magna, parece estar alinhado com esta tendência. Nosso pacto federativo prevê uma ordem jurídico-política nacional e outra regional. A par disto e com base no ordenamento constitucional, as instituições policiais são representadas nos planos nacional e regional (Estados). Atualmente, temos o Departamento de Polícia Federal, subordinado ao Ministério da Justiça, com circunscrição nacional e atribuições de polícia administrativa (Polícia Rodoviária Federal e Polícia Ferroviária Federal, esta quase inexistente) e de polícia judiciária (Polícia Federal) delimitadas por lei. No âmbito dos Estados, temos as Secretarias de Segurança Pública, subordinadas aos chefes do Poder Executivo estaduais (Governadores de Estado e Distrital), com as polícias civis (polícia judiciária) e as polícias militares (polícia ostensiva/ fardada). Discussões em torno deste sistema geraram propostas para a desconstitucionalização das polícias, unificação das polícias estaduais, desmilitarização das polícias entre outras. Também existe uma defesa da ampliação do poder das Guardas Municipais, que não detêm poder de polícia, de acordo com a Constituição do Brasil, alinhada com a crescente importância da idéia de municipalização da segurança pública. Nenhuma proposta apresentada, no entanto, representa certeza na solução ou melhora da grave situação da segurança pública no Brasil.

A participação social ou comunitária nas questões de segurança pública é outro critério fundamental para a democratização das polícias. Talvez constitua um dos maiores desafios para a sociedade brasileira e para suas polícias. Empiricamente, a participação popular parece ser mais bem sucedida em localidades bem estruturadas, onde se concentram classes econômico-sociais com boas condições. No entanto, as áreas mais necessitadas e que mais demandam atuação policial, como as periferias dos centros urbanos, oferecem maior resistência à interação com a polícia por conta da relação pouco amistosa entre polícia e sociedade. O superado período do regime militar, momento histórico em que as forças policiais supostamente serviram como braço repressor de combate aos subversivos e aos terrorristas, legou às polícias brasileiras contemporâneas práticas intoleráveis numa democracia. Lamentavelmente, os excessos cometidos contra os terroristas e subversivos, que encontravam guarida naquele regime autoritário, no combate aos crimes políticos e aos crimes contra a segurança nacional, agora são, não raras vezes, praticados contra os infratores da lei e até mesmo contra grupos vulneráveis, em sua maioria, jovens afro-brasileiros pobres e moradores das periferias, no combate ao crime comum. Em alguns casos, aparentemente, persiste o uso das polícias como órgãos de controle social na defesa do interesse das elites ou do Estado, longe do papel de servir e proteger a sociedade como um todo. As polícias precisam reverter este quadro de desconfiança e descrédito perante a população, construindo uma imagem positiva. A "confiança facilita um maior contato com a comunidade que, por sua vez, facilita a comunicação que leva a uma maior confiança, processo conhecido por retroalimentação" (Curso Polícia Comunitária, 2008; Módulo 3; SENASP/MJ).

A participação comunitária e a co-responsabilidade dos cidadãos nas questões de segurança pública são respaldadas no príncipio estabelecido no caput do artigo 144 da CF/88 que preceitua que segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Permite ao gestor de segurança, em parceria com os cidadãos, identificar e definir os problemas locais, discutir e estabelecer as prioridades e, por fim, definir o planejamento e as estratégias para solucionar tais problemas. Nos países democráticos, os cidadãos deveriam exercer papéis mais importantes na administração e na atividade policial. Um exemplo de parceria bem sucedida com o Terceiro Setor (ONG - Organização Não-Governamental), no Brasil, é o Disque-Denúncia 181, que tem auxiliado na solução de crimes, além dos programas de policiamento comunitário já implementados em vários Estados. Tal aproximação ainda é importante para que os cidadãos sejam informados sobre seus direitos e deveres em ações policiais. Por exemplo, a abordagem e a busca policial são fontes de muitas reclamações por parte da população. Entretanto, é o tipo de ação que gera muita apreensão para o policial, pois a possibilidade de uma agressão é grande, caso de abordagem de infratores da lei. É imprescindível que uma pessoa submetida a abordagem policial saiba que não deve colocar as mãos no bolso procurando identificar-se. Haverá um momento apropriado para isto depois que o policial constatar que a pessoa abordada não representa perigo algum para ele ou para sociedade. Neste caso, um exemplo de boa prática é o impresso do Governo Federal brasileiro entitulado "A Polícia me Parou. E Agora?", que versa sobre como se comportar e quais os direitos de uma pessoa diante de uma abordagem policial.

O controle da atuação policial e de seu exercício de poder é indispensável num regime democrático. Portanto, outro critério essencial de uma polícia democrática é a implementação de uma gestão organizacional moderna, eficaz e eficiente nas instituições policiais, possibilitando controle, avaliação e monitoramento dos resultados e controle da própria atuação policial. A adoção de mecanismos de gestão também torna factível constantes correções de eventuais retrocessos e falhas dos policiais. Para tanto, as organizações policiais em funcionamento necessitam de critérios mensuráveis que deem azo a um efetivo controle sobre suas atividades. Por outro lado, permitem a contenção da violência policial e da corrupção que devem ser, se possível, erradicadas das forças policiais. A violação de direitos humanos não pode ser usada sob pretexto de preservação da ordem e da lei e o uso da tortura é absolutamente proibido. A polícia encontra sua legitimidade e legalidade em valores instituídos na lei, uma força pública de garantia de direitos e aplicação da lei subordinada ao Estado de Direito. Considerando o exercício da discricionariedade da polícia, deve haver preocupações com os valores positivos de uma sociedade democrática como, por exemplo, pluralismo, tolerância, paz, liberdade de expressão, garantias individuais. A idéia da obrigação de policiais prestarem contas a instâncias controladoras ou a seus representados é resumida na responsabilização com transparência ou accountability. O controle externo das polícias também é importante e deve ser realizado pelo Judiciário, Ministério Público e pela própria sociedade civil, organizada ou não, através da participação nos Conselhos de Segurança. Ademais, a informatização e a desburocratização dos serviços policiais são outro lado importante a ser implementado com as ferramentas de gestão moderna.

A valorização da carreira policial é outro aspecto fundamental. Não basta dotar as instituições policiais com os meios e recursos materias e humanos indispensáveis a consecução de seus objetivos. Não basta resgatar a credibilidade e legitimidade das polícias diante da sociedade. Mister se faz que os policiais tenham todo um suporte para exercerem suas atividades, desde a assitência jurídica, por exemplo, por meio da procuradoria de justiça, quando agirem em razão da função, passando pela melhoria dos rendimentos. Outra questão insustentável no Estado Democrático de Direito reside na supressão de alguns direitos para os policiais militares, direitos que outras categorias profissionais possuem, tais como a proibição de sindicalização e greve, a vedação de filiação a partidos políticos, a imposssibilidade de impetração de habeas corpus para punições disciplinares militares e a restrição de direitos sociais (Art. 142, §§ 2° e 3°, incisos IV, V e VIII cc Art. 42, § 1°, todos da Constituição Federal de 1988). O status militar da polícia certamente impõe algumas peculiariedades, mas não torna o militar do Estado menos cidadão que qualquer outro profissional. Não há argumentos razoáveis que justifiquem tal discriminação negativa, principalmente sob a ótica do ordenamento jurídico nacional e internacional de proteção de direitos humanos. A atividade laborativa extracorporação ou "bico" é outra realidade que deve ser ponderada e regulamentada, até mesmo com potencial para retorno financeiro para o Estado e reversão às políticas de segurança. Alternativamente, a remuneração deve ser compatível com a importância da atividade policial de maneira que não haja tanta busca por complementação de rendimentos e que permita dedicação integral ao serviço policial.

Necessariamente, uma polícia democrática deve investir na capacitação contínua de seus integrantes no uso da força e de armas de fogo. Na sociedade moderna-tardia, a pretensão de um Estado Moderno monopolizador do uso legítimo da força parece estar mitigada com o avanço da privatização da segurança diante da limitação do aparato policial. A fiscalização e o controle da segurança privada é algo importante a ser abordado, mas que não faz parte deste Trabalho. Ademais, o Estado continua sendo detentor do uso legítimo da força, tarefa realizada, em parte, pelos órgãos policiais. Na realização de sua missão, portanto, a polícia tem autorização legal para fazer uso da força ou de armas de fogo em algumas circunstâncias. Contudo, é inconcebível que as instituições policiais dos países democráticos, que deveriam ser as primeiras defensoras dos direitos humanos, dentre os quais o direito à vida, liberdade e segurança pessoal, compactuem com quaisquer ações abusivas, uso indiscriminado ou excessivo de violência e execuções sumárias. A tortura e a violência policial não podem ser admitidas em quaisquer circunstâncias. Para o uso da força e de armas de fogo, os princípios de legalidade, necessidade e proporcionalidade devem ser observados. Além disso, os policiais devem recorrer a força quando estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever, assim como o uso de armas de fogo é uma medida última quando há iminente perigo de morte para o policial ou terceiro. As forças policiais devem adquirir e utilizar técnicas e tecnologias não letais de intervenção policial, com atuação pautada no uso progressivo da força, sempre que possível, priorizando meios não violentos de solução de conflitos, negociação e verbalização. A preocupação com treinamento, atualização e aperfeiçoamento dos profissionais de polícia deve ser constante para assegurar o uso adequado da força letal ou não letal.

Por derradeiro, outro critério essencial para a construção de uma polícia democrática no Brasil passa pela implementação e consolidação de uma política de segurança pública efetiva que priorize a prevenção sem descuidar da repressão qualificada. Eis outro grande desafio à sociedade brasileira. Por quê? O problema do crime e da violência é multidimensional e, portanto, deve envolver a atuação em diversas frentes: saúde, educação, lazer, profissionalização de jovens, urbanização, habitação, segurança etc. Não havendo avanços nestas áreas, que concedem expectativas aos cidadãos, o comprometimento da ordem pública, especialmente da segurança pública, é quase certo, o que prejudica também o livre exercício dos direitos e liberdades. Verifica-se que deve existir articulação entre os governos nos três níveis (Federal, Estadual e Municipal) com participação dos poderes Judiciário e Legislativo. Aumento dos índices criminais, desordem, insegurança, sensação de impunidade, descrédito dos órgãos públicos, problemas dos mais variados tipos começam a proliferar ante a ausência da referida intersetorialidade. No contexto brasileiro, os números da violência criminal assustam, com momentos de superação do tolerável. Daí a justificada pressão exercida pela opinião pública, manipulada pelos aparelhos midiáticos, em torno de medidas efetivas para contenção da criminalidade. O país parece que começa a despertar para a complexidade das questões de segurança pública, constatando que as medidas tradicionais não surtem os efeitos desejados, isto é, reforço na atividade repressiva, sem contrapartida no plano preventivo, é ineficaz, é "enxugar o chão com a torneira aberta". O foco nos efeitos dos problemas criminais são limitados e frustrantes. Mas o jogo político-eleitoral impõe respostas rápidas que assegurem votos e perpetuação no poder, ainda que as soluções apresentadas não passem de medidas paliativas. A situação da segurança pública no Brasil requer ações, programas e políticas que alterem profundamente o status quo, o que muitas vezes demanda tempo, investimentos e vontade política. Talvez a desvinculação das polícias, especialmente das polícias judiciárias, do Poder Executivo e a vinculação ao Poder Judiciário, seria um caminho a ser ponderado, ao menos, com o fim de eliminar ou diminuir a ingerência política nos órgãos policiais.

Algumas reflexões do professor doutor Luiz Eduardo Soares (SOARES, Luiz Eduardo. Material da aula Inovações na segurança pública e justiça criminal no Brasil. Curso de extensão universitária Gestão Organizacional em Segurança Pública e Justiça Criminal, NEV/USP, 2008) são esclarecedoras sobre as raízes das dificuldades para planos de reforma das polícias no Brasil, dentre as quais destacam-se "a hiper-politização da segurança pública no Brasil e a manipulação instrumental, oportunista, demagógica e populista da segurança, enquanto tema de agenda pública", "a contradição entre o tempo das reformas e o tempo político, especialmente o tempo eleitoral" e "a contradição entre o tempo das reformas e o tempo das expectativas e das demandas da sociedade, cuja natureza é compreensivelmente imediatista, em razão do caráter dramático e emergencial de que se revestem os principais problemas vividos pela população na área da segurança". A hiper-politização da segurança refere-se ao oportunismo e aproveitamento político, sobretudo da oposição, diante dos graves problemas de segurança pública, ainda que não haja alternativas viáveis e efetivas a serem apresentadas. Na verdade, tal ponto estimula o "ciclo vicioso das respostas improvisadas e voluntaristas do poder público", dificultando a reforma policial e a implementação de políticas de segurança pública preventivas. Trata-se da persistência do modelo policial reativo e repressivo. Já a contradição entre o tempo das reformas e o tempo político-eleitoral, segundo Luiz Eduardo, aponta o fato de que todo chefe de Executivo (Presidente da República, Governador e Prefeito) envolve-se, direta ou indiretamente, em todas as eleições, a cada dois anos, já que a trajetória de qualquer político depende das coalizões, vitórias e derrotas colecionadas. Conclui o eminente professor que "cada governante tem apenas o primeiro e o terceiro ano de mandato para atuar com independência relativa dos movimentos político-eleitorais". Diante do quadro crítico da segurança pública que exige uma politica que promova profundas alterações e reformas, surge a contradição de tempos, já que políticas de segurança, que demandam mais tempo (efeitos a médio e longo prazos) são esvaziadas e a hiper-politização da segurança e as expectativas e demandas sociais, que urgem respostas rápidas, acabam sendo limitadas pelos interesses e compromissos político-partidários.

(artigo extraído do TCC de conclusão do curso em especialização em gestão de políticas preventivas de violência, direitos humanos e segurança pública 2008, da FESPSP, com adaptações)

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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