André Abreu de Oliveira – Salvador (BA) – 06/07/2009 15:54
Em resposta ao assustador aumento dos acidentes de trânsito, parte considerável resultante da infeliz combinação de álcool e direção veicular, foi promulgada a Lei nº. 11.705. Essa recente Norma, de 19 de junho de 2008, apelidada de “Lei Seca”, realizou alterações em vários dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro que tratam da embriaguez ao volante — seja no aspecto penal, seja na esfera administrativa. Sobre algumas destas mudanças é que trataremos aqui, enfatizando aquelas relacionadas à questão criminal.
Inicialmente, cumpre observar que certas regras, já existentes no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), estão sendo apresentadas como novidade trazida pela “Lei Seca”, quando na verdade não sofreram modificação. Assim está sucedendo com o valor da multa cominada à infração de embriaguez ao volante, prevista no art. 165 do CTB, que continua o mesmo, mas tem-se noticiado, de forma equivocada, que aumentou consideravelmente depois da nova Lei. O certo é que, desde a elaboração do CTB, em 1997, a multa é de cinco vezes o valor da infração considerada gravíssima, ou seja, os mesmos R$ 957,70 (novecentos e cinqüenta e sete reais e setenta centavos) estabelecidos hoje.
Ademais, não é completamente nova a chamada “tolerância zero”, isto é, a ocorrência de infração de trânsito independentemente de qualquer concentração de álcool por litro de sangue. Essa mudança já havia acontecido com o advento da Lei nº. 11.275, de 7 de fevereiro de 2006, que deu nova redação a alguns dispositivos do Código de Trânsito. Vejamos: o CTB, em seu texto original, previa no art. 165: “Dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica” (grifei). No entanto, em maio de 2006, a citada Lei nº. 11.275 suprimiu do art. 165 do CTB justamente aquele trecho, destacado acima, que determinava o nível de álcool. Portanto, desde essa época, não existia mais limite algum na infração de embriaguez ao volante. De qualquer forma, a Lei nº. 11.705/08 tornou isso mais claro com a alteração do art. 276 do CTB, que agora prevê: “Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código”.
Em seguida, cumpre analisarmos as novidades trazidas pela Lei nº. 11.705/08 relativas ao aspecto criminal, como a retirada de uma das causas de aumento de pena do crime de homicídio culposo na direção veicular. Essa circunstância era prevista para quem cometesse esse delito e estivesse sob a influência de álcool ou substâncias de efeitos análogos, aumentando-se a pena de um terço à metade. O motivo da revogação do inciso V do art. 302 do CTB, que continha a regra em questão, foi facilitar o enquadramento desses casos em homicídio doloso. Pois, caso continuasse aquela circunstância, em tese, teriam que ser tipificados ali todos os homicídios em direção de veículo automotor quando o condutor estivesse embriagado. No sentido da tipificação como homicídio doloso, existem recentes decisões judiciais, como a do Superior Tribunal de Justiça, o qual negou um pedido de habeas corpus feito por um acusado que, estando este sob influência de álcool, envolveu-se em um acidente de trânsito fatal com vítima, sendo então condenado por homicídio doloso (HC 82.427-PR, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 17/12/2007, DJ 18/02/2008). Provavelmente, estes novos julgados influenciaram a retirada da causa de aumento de pena do art. 302 do CTB.
Ainda em relação à esfera penal, a Lei nº. 11.705/08 trouxe uma nova definição ao delito de embriaguez ao volante. Antes das recentes alterações, o CTB, em seu art. 306, prescrevia assim o crime de embriaguez ao volante: “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” (grifei). Por sua vez, a Lei nº. 11.705/08 retirou da redação original a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, acrescentando-lhe a seguinte: “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”. Ou seja, o que antes era exigido para se caracterizar a infração do art. 165 (o nível mínimo de álcool), agora passou a fazer parte da conduta do art. 306, crime de embriaguez ao volante.
Neste passo, dentre todas as mudanças ocasionadas pela recente Lei, a retirada do requisito de exposição a dano, no novo tipo penal de embriaguez ao volante, a nosso entender, é a que reclama maior atenção. Pois, ao se fazer isso, transformou-se um delito de perigo concreto em um de perigo abstrato. E qual a diferença entre eles? Valendo-se das palavras esclarecedoras de Alice Bianchini, vejamos: “Duas são as espécies de crimes de perigo: crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. A distinção entre elas não recai no grau de perigo apresentado, mas na efetivação do perigo, que, no primeiro caso, exige uma comprovação real [no caso da embriaguez ao volante, dirigir em alta velocidade ou em ziguezagues, por exemplo] e, no segundo, é presumido, dispensando prova de sua existência” (Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal, São Paulo: RT, 2002, p. 66). Assim, o delito de embriaguez ao volante, que era um crime de perigo concreto, já que necessitava da confirmação de efetiva exposição a dano, depois da Lei nº. 11.705/08, passou a ser um crime de perigo abstrato, isto é, que não necessita da comprovação de nenhuma conduta perigosa.
É certo que o direito penal deve acompanhar a evolução da sociedade na qual está inserido, incriminando novas condutas atentatórias à paz social ou, ainda, agravando aquelas já existentes. Mas, de qualquer forma, nesse ajuste do direito à sociedade, não se pode extrapolar os limites impostos, explícita ou implicitamente, pela ordem constitucional vigente e pelo regime por ela adotado. Dentre essas limitações, consta a necessidade de se comprovar, antes da criação de tipos penais, a ofensa ao bem jurídico resguardado, ao menos por uma exposição desse bem a um risco concreto −; o que não foi obedecido na recente Lei em relação ao novo delito de embriaguez ao volante.
Entretanto, não se pretende aqui desmerecer o bem jurídico protegido pelo novo texto legal, que é a segurança viária. Muito pelo contrário, é inegável a sua extrema relevância. O que se questiona é a necessidade de se estabelecer, pelo menos, uma ameaça concreta a esse bem jurídico-penal para que haja o crime, requisito que não está presente na nova redação legal. Sustenta-se aqui, recorrendo mais uma vez à lição de Alice Bianchini, que “a existência concreta de perigo é, minimamente, o que se deve exigir da conduta criminalizada” (op. cit., p. 68).
Além disso, as demais situações de embriaguez ao volante, sem exposição a risco concreto de dano, não restarão impunes. Estas continuarão sob a tutela do direito, no caso, por intermédio do seu ramo administrativo, enquadrando-se na infração do art. 165 do CTB, que, diga-se de passagem, é bastante rigoroso nas penas impostas para quem nele incorre.
Posta assim a questão, a solução que parece mais razoável é somente tipificar o crime de embriaguez ao volante naqueles casos em que haja exposição da incolumidade pública a perigo concreto de dano. Portanto, para se caracterizar o crime de embriaguez ao volante, somado ao nível igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue, deve-se exigir a comprovação do risco concreto de dano, risco este que fica evidente nas condutas de avançar o sinal vermelho, conduzir o veículo na contramão ou quase causar um acidente de trânsito, por exemplo. Os demais casos, em que o condutor esteja fazendo uso de álcool ou substâncias psicoativas, sem efetivo perigo de dano, ficam por conta das sanções administrativas, como já exposto acima. Por fim, todo legislador, antes de tentar criar uma nova lei, deveria pensar nas seguintes palavras de Thomas Jefferson: “A aplicação das leis é mais importante que a sua elaboração”.
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