Comunidade Segura · Rio de Janeiro (RJ) · 22/7/2009 16:27
Por Marina Lemle
Nada justifica a morte ou o ferimento de um inocente. Com essa consciência, os soldados da Minustah – a Missão de Paz da ONU no Haiti - deram seis mil tiros de advertência em uma semana e não atingiram ninguém. A afirmação é do general Santos Cruz, que durante mais de dois anos comandou as tropas internacionais de paz no Haiti.
"Foram seis mil decisões corretas. É por isso que sou fã dos soldados", disse o general brasileiro no seminário "Uso progressivo da força: dilemas e desafios", realizado no dia 3 de julho, no Rio de Janeiro. Organizado pelo Viva Rio com apoio do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça e do Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (Pnud), o seminário reuniu militares, policiais, gestores e pesquisadores da segurança pública com o objetivo de promover um debate qualificado acerca do tema.
Santos Cruz contou que apenas soldados voluntários treinados intensamente com todo o material possível durante quatro a cinco meses foram recrutados para a Missão de Paz no Haiti. Segundo ele, a Minustah reúne os melhores militares que cada país pode oferecer, e que em todos os setores só há pessoal especializado.
"Levávamos de três mil a 3.500 tiros na rua por dia. Tem que ter muita confiança no próprio procedimento para não fazer besteira. Não se pode fazer uma operação sem um objetivo definido bem claro e a tropa treinada para a ação. Tem que ter tranquilidade e desenvolver a percepção. Não é todo sujeito de mau aspecto que é bandido", afirmou.
Cruz destacou a importância do soldado que está na rua, porque ele conhece os detalhes da vida prática local e sabe a resposta que a comunidade quer e precisa. "Ele transforma em prática o que a gente idealiza. Os soldados são corajosos quando é necessário e também ajudam em serviços, usando calção", contou.
Já aqui no Brasil, o uso da força não está devidamente protocolado. Segundo o antropólogo Rubem César Fernandes, diretor-executivo do Viva Rio, o uso descontrolado da força se impõe quando um agente responde a situações imprevistas de forma improvisada, como se fosse refém da iniciativa adversária.
"Quem atirou primeiro? Não dá para saber e a uma certa altura não importa. É preciso agir com menos margem de risco de fatalidades e perdas, como mostram as experiências no Haiti", defendeu.
De acordo com a antropóloga Luciane Patrício, do Ministério da Justiça, o uso da força no Brasil ainda carece de indicadores, o que deixa certas decisões na obscuridade. "Por exemplo, em que situações se justifica o uso do blindado (popularmente conhecido como "caveirão") pela polícia?
Segundo Luciane, o uso da força deve ser previsível, o que confere confiança. "É preciso romper com a lógica de que uso da violência é uso da força. Se ele é legal, é legítimo. Deve-se saber que procedimento a polícia irá adotar a partir de determinados níveis de risco. Esse é um ponto nevrálgico das polícias no mundo inteiro", disse ela. Para Luciane, a afirmação de que "policiamento se aprende nas ruas" mostra a fragilidade do ensino.
Daniel Lerner, assessor da Secretaria Especial de Direitos Humanos, lembrou que a própria presença policial é o primeiro degrau na doutrina do uso progressivo da força, como coibidor inicial. Ele acrescentou que para a cultura policial se transforme com base nos direitos humanos, o lado dos profissionais de segurança também devem ser levados em conta.
Representando o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (Bope), o major André Batista disse que para reduzir a letalidade de policiais e da população civil é preciso qualificar a ação policial, o que se faz com centros de instrução, equipamentos e tecnologia e com o fortalecimento da legitimidade institucional da polícia, de forma que se resgate a sua autoridade.
O major destacou a importância dos projetos sociais que trazem a comunidade para dentro do batalhão e da redefinição das relações entre polícia e sociedade. Para Batista, mesmo depois de se aplicar a força em nível máximo, ainda se pode voltar ao nível um, que é o diálogo. Ele contou que o Bope tem diversos tipos de armas não letais e que a tropa é treinada diariamente e está capacitada para o uso do taser, que nunca foi usado.
Para Paulo Storani, secretário municipal de Segurança Pública de São Gonçalo, RJ, e instrutor da Academia de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, o uso correto da força depende muito de como o profissional é selecionado e treinado.
"Não podemos esquecer da pessoa ao construir uma política pública que a sociedade considere correta. Não é só o que se pode fazer em termos de normas e procedimentos, mas também o que se pode fazer para que as pessoas trabalhem dentro da norma. É preciso considerar ao que o policial é submetido e o que é cobrado dele. O protocolo de engajamento não pode ser mais uma norma escrita que não tem condições de ser realizada", enfatizou.
Storani acrescentou que o saber acadêmico "tem valor no discurso mas não na rua". "Em situação de estresse, o tempo passa muito rápido e a decisão muitas vezes é irreversível", disse. Para ele, o desafio de construir um protocolo de engajamento é um grande desafio que passa por três dimensões: a norma, a pessoa e o treinamento. "O bem maior são as vidas salvas, tanto dos operadores da segurança quanto dos infratores", concluiu.
A professora Jacqueline Muniz, co Grupo de Estudos Estratégicos da Universidade Cândido Mendes, no Rio, lembrou que apesar de o Brasil ter assinado todos os protocolos da ONU, isso não se traduziu em políticas e procedimentos de polícia. Para ela, os protocolos, para funcionarem, precisam de uma perspectiva de pactuação entre a polícia e os cidadãos.
Segundo Jacqueline, sem pacto, maximiza-se o poder de polícia, numa relação que por partida é assimétrica.
"O fundamento é o pacto, de acordo com cada sociedade. Pactuações locais, cotidianas, com consentimento entre a polícia e os cidadãos, permitirão construir os protocolos", disse.
Para Antonio Rangel Bandeira, coordenador do Projeto de Controle de Armas do Viva Rio, o seminário superou as expectativas. Segundo o pesquisador, mesmo sendo as armas menos letais um tema muito novo no Brasil, o evento reuniu policiais e especialistas em segurança pública de vários pontos do país que já demonstram estar se atualizando sobre o assunto, muito debatido nos países desenvolvidos.
"Se nestes países em que a polícia tende a ser mais bem treinada e respeitadora dos direitos dos cidadãos o tema é considerado relevante, imagine a importância para o Brasil, em que a truculência e arbitrariedade ainda impregnam amplos setores de nossas corporações", disse.
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