29/1/2010 - 19:00
O ano de 2009 terminou com um balanço pouco animador na política nacional de segurança pública. Não obstante algumas conquistas, a década de 2000-2009 foi a continuidade de um flagelo na área da segurança. Apesar da diminuição de alguns indicadores de crimes violentos observados na segunda metade dessa década a partir de 2005, o balanço final mostra que não temos motivos para comemorar. O número de mortes por homicídio no Brasil é vergonhosamente assustador: cerca de 37 mil brasileiros perdem a vida por ano. Em sua maioria jovens, na faixa etária entre 14 e 29 anos, pobres e negros. Este também é o perfil dos novos presidiários que entram em idade cada vez mais tenra em nossas prisões - verdadeiras masmorras que não recuperam nem integram os infratores à sociedade. Prova disso é que as taxas de reincidência no país chegam a alarmantes 80%.
Como se não bastasse o número de homicídios - a maioria fruto do adensamento do tráfico de drogas no país, mas uma grande quantidade motivada por questões banais, devido ao número crescente de armas em poder dos cidadãos -, outros indicadores de causas externas de mortalidade nos envergonham: são cerca de 36 mil mortes por ano no trânsito, essa nova máquina de matar que continua gerando novos criminosos sem nenhuma punição. Isto porque nossa legislação não considera os assassinatos praticados por motoristas drogados, bêbados, irresponsáveis, em veículos sem condições de uso, como crimes dolosos. Afinal, até bem pouco tempo o automóvel era acessível somente às elites que continuam impunes, num país cujo sistema de justiça criminal é leniente, moroso e altamente seletivo – às vezes eficiente na punição de ladrões de chinelo, mas por outro lado, crimes do trânsito, do colarinho branco, da corrupção são quase invisíveis para uma justiça, em boa medida, cega e muda frente ao poder econômico.
A taxa de apuração de crimes pelas polícias é absurda. Homicídio, o crime mais violento, que atenta contra a vida humana, tem taxa de resolutividade de cerca de 7 a 10 %. Ou seja, de cada 100 homicídios, somente 7 a 10 autores desses crimes são efetivamente punidos. Com esse nível de ineficiência a impunidade campeia em nossas plagas. E como resultado desse descalabro, o cidadão, desconfiado do sistema de proteção e defesa social, deixa de notificar a maioria dos crimes, dificultando ainda mais o planejamento estratégico e a gestão policial.
Verifiquemos, ilustrativamente, a situação da segurança pública nos três principais e maiores estados brasileiros, no período acima mencionado:
Observamos, na primeira década do século XXI, melhorias dos indicadores sociais; porém, temos ainda agências públicas que amedrontam a cidadania: polícias que torturam, invadem residências sem ordem judicial, julgam e executam. Agentes públicos que cotidianamente rasgam a Constituição, sem serem punidos. A violência institucional é histórica na nossa sociedade. A relação Casa Grande-Senzala transborda nas práticas violentas do estado em relação à cidadania. Mas foi somente nos últimos anos que essa barbárie anti-civilizatória apareceu à sociedade. O número de mortes provocadas por policiais nunca antes havia sido publicizado. Somente no Rio de Janeiro, millhares de cidadãos foram mortos pelas polícias na década. Polícia que tem autorização implícita de governantes que coadunam com essas práticas e uma sociedade imobilizada pelo medo, que cala-se e, no mínimo, é conivente com esse tipo de barbárie. Acrescente-se o papel da mídia, em boa medida, espetacularizando as ações brutais do Estado e estimulando a violência institucional.
E os homicídios? Vamos ao exemplo paradigmático de Belo Horizonte: em 1999, a capital mineira teve 536 assassinatos. Esse número chegou a mais de 1.300 mortes em meados da década. No ano passado foram 730 mortes. Uma taxa de 30 homicídios por 100 mil/habitantes, quando o razoável seria algo em torno de 10 mortes por 100 mil habitantes. Como, então, comemorar melhorias nesse tipo de indicador? O que aconteceu em Belo Horizonte em termos de homicídios se aplica em boa medida às grandes cidades do país. Ou seja, o drama das mortes violentas, associadas principalmente ao recrusdescimento do tráfico do drogas e armas, é um fenômeno marcante nesse período. Os indicadores de homicídios, mesmo em queda, ainda são vergonhosos.
Por fim, São Paulo desponta como paradigma do sistema prisional brasileiro. Ineficiente e oneroso, esse sistema ampliou-se soberbamente com a política de encarceramento e recrudescimento penal dos últimos anos. No Brasil, a população prisional mais que triplicou no período: hoje, são quase 500 mil presos. Em São Paulo, presenciamos uma brusca diminuição das taxas de homicídios, nos últimos anos, acompanhada do exponencial crescimento das prisões e dos presos. De dentro dos cárceres, muitos crimes são articulados e perpetrados, sinal de que nosso modelo prisional precisa ser urgentemente repensado. Trata-se, nesse caso, de se pensar num novo modelo prisional, dado que remendos novos num pano tão apodrecido, como a criação dos presídios federais, não resolve o problema.
Apesar desses números, podemos ver algumas luzes no final do túnel: primeiramente, o debate sobre segurança pública amplia-se. A sociedade passa a vocalizar uma ação articulada do Estado para essa área; segurança pública como direito de cidadania. Novos atores sociais são chamados a darem sua contribuição. Há uma evidente reação do poder público, com mais investimentos na gestão, integração e na eficiência policial. Programas de prevenção ao crime - destinados a jovens e populações em condições de vulnerabilidade social -, se institucionalizam.
Os municípios, antes alheios aos problemas da segurança, compreenderam seu papel nessa política e vêm cumprindo a tarefa de ampliar os programas sociais, investindo também na prevenção ao crime, na melhoria da infra-estrutura urbana e na vigilância do patrimônio público, desonerando a atividade policial.
O poder judiciário, menos encastelado e reativo, começa a experimentar novas metodologias de ação: a justiça restaurativa vai-se ampliando; a aplicação de penas e medidas alternativas ganha força e novos arranjos possibilitam uma justiça mais célere e eficiente.
Por fim, os gestores públicos nos níveis municipal, estadual e federal começam a atuar de forma articulada e cooperativa, não somente no combate ao crime, mas nas ações de prevenção e, principalmente, no planejamento estratégico e integrado de ações de médio e longo prazos o que poderá resultar, brevemente, numa melhor eficiência na política pública de segurança.
A década passada foi praticamente perdida para a segurança pública. Tomara que em 2010 os governos e todos os segmentos da sociedade articulem uma reversão no macabro quadro da (in) segurança pública brasileira. Que o poder público reconquiste seu lugar de garantidor dos direitos da cidadania. Que a cidadania ativa possa participar desse novo momento. E que possamos comemorar, no final desta década, indicadores que garantam ao povo brasileiro a tão sonhada paz, com justiça social.
(Versão simplificada deste artigo foi publicada no Jornal "O Globo", de 28/01/10, 1º caderno, página 07).
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